Vento.

Meio dia de um domingo frio. lá fora um céu azul anil lindo, algumas dispersas nuvens brancas e um sol fraquinho que aquece o rosto na manhã gelada. a luz entra pela janela em tons azulados que iluminam o cacto tortinho, que não sabe se vai ou se fica, e a flor de maio desejosa de sol. do lado da cama uma caixa cilíndrica fechada com cacarecos. muitos. “Alice’s Adventure in Wonderland and Through the Looking-Glass”, antigo cartão de banco, fósforos queimados, tesoura, colares, óculos, garrafa d’água e um abajur com a lâmpada, envolvida em papel celofane vermelho, acesa. assim sentia o domingo solitário com quê mais caloroso.

Sentada na cama, enrolou-se em lençóis, cobertores e travesseiros de tons calmos, mas vibrantes ao seu modo. o lençol amarelo clarinho, com pequenas flores abstratas que pareciam pintadas em aquarela, mostrava-se apenas nas beirada da cama de tamanho para duas pessoas. o tom se misturava com o rosa claro do edredom macio que encobria mais duas outras cobertas. as cores casavam perfeitamente com o aroma do incenso de Almiscar.

Gostava quando despertava intensa e com tempo para sentir isso. após acordar às 8h36, se forçou a dormir mais um pouco. levantou próxima do meio do dia. fez seu ritual de bom dia ao mundo e colocou Led Zeppelin para tocar. fez xixi, escovou os dentes, foi para a sala juntar as garrafas de vinho da noite anterior. sábados gelados só são aquecidos com bons, e ruins, vinhos. catou as garrafas espalhadas, copos com dois dedos de vinho, o quebrado com alguns cacos espalhados, cinzas de cigarro e foi lavar a frigideira onde aqueceu queijo coalho na noite anterior.  gosta muito dos pequenos prazeres gastronômicos, não consegue abandonar.

No canto do chão do quarto algumas roupas jogadas, as blusas mais pesadas. o frio é intenso e esta longe de ser o exemplo de resistência a baixas temperaturas. mas a sensação de estar quentinha era tão agradável, e sentir frio era tão distinto daquele sentimento, que tremeliques nada tímidos vinham. a pele se arrepiava com muita facilidade. a mãe dizia que era pele de sapo. qualquer vento gelado que batesse nas costas, qualquer beijo mais próximo de nuca, já ouriçavam os curtos e quase transparentes pêlos do braço.

Apesar de saber que não nasceu preparada para sentir aquele frio, ainda assim, achava tudo um grande charme. as exageradas e grossas roupas distanciam os corpos. nestes casos, todas as peles visíveis ficam ainda mais apreciáveis. a mão branca com a ponta dos dedos roxos. os rostos gelados com os lábios lambusados de manteiga de cacau. a vontade de ficar perto, abraços e aconchegos. é mais que um charme, um estado de espírito.

No ambiente que lhe cabia com perfeição, olhou pela janela. o dia estava visualmente gelado. pensou. pensou o que não via e sabia que existia. o vento deveria ser algo singular ou plural? pensou que os ventos se dividiam em grupos e que cada um desses grupos se direcionava para um lugar. eram tão envolvidos que se moviam de forma amparada e sinérgica. ao longo dos anos, choques aconteciam. mas eram apenas momentos de explosão de sentimentos dos ventos. ou deveria pensar que os ventos não têm sentimentos? sabia que tinham.

Sabia também que os ventos e seus cheiros sentiam suas memórias. quando batiam em sua face e entravam em suas narinas seu coração disparava e ela flutuava. perfeito êxtase. por  segundos, mergulhou em suas memórias. a sensação tremia as pernas. conseguiu sentir o cheiro e sentir o ar fresco do momento em que viu o céu ser manhã de um lado e noite do outro. às seis horas da manhã de algum dia da semana que não sabia. do alto de um morro da ilha, com o mar à frente, depois de uma noite não dormida entre as trilhas escuras, viu o céu se dividir entre a noite e o dia. do lado esquerdo, a noite. do direito, o dia. acima via o claro e o escuro se unindo em tom  roseado perfeitamente harmônico. pensou que devia ter trazido a câmera. lembrou que não tem sorte com ela em lugares ou estados arriscados. e foi assim que o momento em que o dia e a noite se deram bom dia e boa noite só ficou na memória dela. e na dele.

Respirou. cobriu-se. naquela manhã, toda a nostalgia de sua adolescência puro rock’n roll. sentia fervor no corpo. o rock combinava perfeitamente. os que dormiam pela casa foram acordando e se espalhando por sua cama. um bom dia, risadas. o meio pediu boa música.

“Se eu não tivesse com afta até faria uma serenata pra ela. Que veio cair de morar em cima da minha janela”.

um calor se despejou pelo seu corpo. inesperadas e deliciosas sensações.

O meio da tarde se aproximou. a boca seca por uma cerveja, bons amigos e conversas. domingos têm seus rituais. devem ser respeitados. coração calmamente feliz. sempre gostou de saber ser calma. sentou em algum bar de algum parque e colocou-se a beber e a observar.

Ouviu o que soube: ainda queria morrer de amor.

Sobre patavinasdenada

"Suspeito que quem diz essas coisas não sabe nem o caminho de casa. Acho que as buscas mais interessantes começam com frases como: ´Não sei mais quem eu sou´ ou ´Não tenho ideia de quem eu sou´. Ótimo, podemos dizer que começamos a nos conhecer. Claro que só para nos perdermos logo adiante. Afinal, para que mais serve a vida?" Intera a sensação de ambiguidade. E não adianta, o que mais gosto em mim é o meu ridículo. Eu só não sei se é cheiro de gosto ou gosto de cheiro.
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2 respostas para Vento.

  1. Carla disse:

    Muito bom texto.

  2. Lálika disse:

    Imaginei todas as cenas que vc descreveu. Isso só acontece qndo alguém escreve bem. Parabéns! =D

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